The Square – A Arte da Discórdia



Culpa x Cinismo

“Desculpa qualquer coisa
Minha culpa, minha culpa, culpa minha de pedir perdão
Culpa de fazer sucesso, culpa de ser um fracasso
Culpa sua, culpa de cristão”¹

Ao discorrer sobre Blade Runner 2049 (EUA, 2017) Isabela Boscov destaca que o filme possui “um ritmo muito deliberado que Villeneuve manipula de forma a obrigar a plateia a rever suas expectativas sobre ação, catarse e recompensa”². Semelhante pensamento pode ser aplicado a The Square – A Arte da Discórdia (Suécia, Alemanha, Dinamarca, França/2017) na medida em que o diretor Ruben Östlund por vezes leva a aflição do público às alturas com sequências apreensivas que, entretanto, não almejam entregar a explosão catártica normalmente vista no cinemão holywoodiano. Tal quebra de paradigma nem de longe há de ser encarada como uma deficiência até porque a eventual “frustração” desse porvir não tarda a ser aplacada por alguma outra sucessão de cenas que tanto podem ser dramáticas, hilárias quanto aflitivas, o que faz do longa-metragem um curiosíssimo caso de fusão de gêneros interessado em provocar e causar reflexões sem, felizmente, dispor da pretensão de oferecer respostas. 
Outrossim são diversos também os assuntos tratados, destacando-se: o papel da arte contemporânea e seu real valor – discussão, a bem da verdade, travada desde os idos de 1916 a partir da aparição do movimento dadaísta, no que se inclui o conceito de ready made criado por Marcel Duchamp – bem como o individualismo que leva o ser humano a ter atenção apenas para si e para os que lhe são próximos, ignorando, desta feita, as mazelas alheias. Dentro deste contexto, tal como costuma fazer Ashgar Farhadi, Östlund utiliza determinado acontecimento na narrativa como gatilho para uma espiral de eventos caóticos surgidos em torno dos personagens e que servem para demonstrar a hipocrisia comportamental do homem, conforme assim ressalta Georgenor Franco Neto:
Ostlund usa a narrativa de The Square para derrubar qualquer autoimagem elogiosa que o espectador tenha. [...] O filme apresenta personagens que carregam uma dicotomia entre aparentar algo e o que essas pessoas são quando colocadas no limite. [...] Enquanto [o protagonista] Christian não é posto em uma situação limite, ele é a tradução do modelo de homem moderno, meio intelectual, meio desconstruído, o sujeito do século XXI. Quando está no limite, ele cede aos instintos, agindo de forma nem um pouco civilizada”³.
 Esse aspecto último referente a falta de cuidado para com o outro, exitoso no modo como consegue impulsionar o espectador a fazer seu próprio mea culpa, é o único ponto do roteiro, absurdamente criativo, que é passível de certa crítica desfavorável ao passo em que aponta o dedo para a culpa particular de cada um que não se comove com moradores de rua e demais pessoas necessitadas, mas não insere na equação a atuação do Estado que, arrecadador de impostos, tem o dever de dirimir tais problemáticas independentemente da existência de iniciativas particulares assistencialistas. Trata-se, portanto, de um leve deslize que não interfere no todo até porque a própria produção ressalta com perspicácia que não raro a boa vontade daqueles que se prestam a auxiliar o outro acaba esbarrando em armadilhas que levam quem ajuda a ser destratado (ou até assaltado) por aquele que é “ajudado”, formando-se, assim, um ciclo vicioso que torna o homem cínico. Cínico como certas obras de arte também o são.
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1.  Culpa – O Terno (Composição: Gabriel Basile / Guilherme D'Almeida / Martim Bernardes).
2. Blade Runner 2049: ficção do século 21 tem a primeira obra-prima. Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/isabela-boscov/blade-runner-2049/. Acesso em 06/11/17.

3. The Square: A Arte da Discórdia – O candidato sueco ao Oscar é um filme essencial para o Brasil de hoje. Disponível em: http://cinepop.com.br/critica-the-square-a-arte-da-discordia-o-candidato-sueco-ao-oscar-e-um-filme-essencial-para-o-brasil-de-hoje-162631.  Acesso em 20/01/18.

4.Não à toa, Marcelo Janot escreve que : “A instalação que [o protagonista] está prestes a inaugurar consiste em um grande quadrado pintado no chão, definido como um ‘santuário de confiança e cuidado, um espaço onde compartilhamos direitos e responsabilidades’. Ou seja, metáfora de um mundo idealizado que, a julgar pelas atitudes de Christian e dos que convivem com ele, facilmente se prova utópico” ('The square - A arte da discórdia'. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rioshow/critica-the-square-a-arte-da-discordia-22251192#ixzz54jZ6sdE1 .  Acesso em 20/01/18).

FICHA TÉCNICA
Direção e Roteiro: Ruben Östlund
Produção: Philippe Bober , Erik Hemmendorff
Elenco: Claes Bang, Elisabeth Moss, Dominic West, Terry Notary, Christopher Læssø, Sofie Hamilton.

Fotografia: Fredrik Wenzel

Edição: Jacob Secher Schulsinger , Ruben Östlund
Estreia: 25.08.17
Estreia Brasil: 04.01.18
Duração: 142 min.

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