Rocco e Seus Irmãos



Violência de Gênero

Apesar de seu inconteste vigor narrativo e do fato de que o trabalho cinematográfico há de ser analisado em conformidade com os recursos técnicos disponíveis para tanto, além dos pensamentos e costumes vigentes à época em que realizado, é difícil assistir hoje Rocco e Seus Irmãos (Itália/França, 1960) sem se incomodar com a forma um tanto misógina como a produção trata sua principal personagem feminina.
Explique-se: Nadia, interpretada com grandiosidade por Annie Girardot, é ora referida pelos demais personagens como uma vagabunda, uma prostituta. A maneira libertária e de afronta aos padrões com que tal mulher vive incomoda até mesmo os dois irmãos que por ela nutrem um sentimento ou que ao menos assim pensam, já que, na verdade, usam-na e descartam-na a seu bel prazer.
Dentro deste contexto, Simone (Renato Salvatori) estabelece com a mulher uma relação fugidia. Não sendo tocada em seu coração e um tanto incomodada com o caráter duvidoso daquele, Nadia volta e meia se afasta e passa longos períodos sem vê-lo, até que acaba se aproximando de Rocco (Alain Delon), irmão mais novo do primeiro, e com ele iniciando uma verdadeira troca de sentimentos.
Tal aproximação não tarda a pôr em rota de colisão os irmãos, choque esse que quando ocorre é resultado mais de um ego ferido do que de uma batalha pelo amor. O embate alcança seu pico no momento em que Nadia é estuprada por Simone na frente de vários homens, inclusive, Rocco. Tal ato traz em sua cola a mais estarrecedora inércia possível, já que absolutamente ninguém cogita levar o caso ao conhecimento da polícia nem mesmo:
- a vítima que, talvez sabedora que um eventual depoimento seu sobre o assunto não seria considerado crível, dada a fama de mulher fácil a ela atribuída;
- o namorado Rocco que, em fidelidade ao irmão e a família, faz de um tudo para que tanto esse quanto o outro ato de violência em seguida praticado por Simone não sejam comunicados as autoridades.
Destarte, Simone, o estuprador, acaba premiado por seu ato seja com a impunidade seja com a volta de Nadia para seus braços. Sim, abandonada por Rocco, sem esperança e cansada  das decepções da vida Nadia acaba reatando o namoro de outrora, orbitando, assim, por uma relação doentia e marcada por chagas que culminam em seu feminicídio. Uma vez cometido mais esse crime, é preciso que o irmão caçula daqueles homens mostre a maturidade ausente nos mais velhos para somente então, quando o estrago já é total e irremediável, afastar-se da passividade de seus familiares e, ato contínuo, denunciar o assassinato e seu autor.
É certo que um filme pode apresentar o ponto de vista de seus personagens sem que isso se confunda com a opinião do respectivo diretor que, por seu turno, pode aqui e ali inserir certos elementos narrativos condizentes com seu modo de pensar e que permitam um outro olhar sobre o assunto abordado. No caso de Rocco e Seus Irmãos Luchino Visconti, empenhado em migrar da estrutura neo-realista para o melodrama¹, deixa de problematizar sob um viés feminino  a questão da violência de gênero e do papel da mulher na sociedade patriarcal, contentando-se, desta feita, por tratar o drama de Nadia sob a régua de conduta dos personagens masculinos, daí os conflitos entre esses parecerem mais importantes do que a forma desrespeitosa e truculenta com que Nadia é por eles tratada e descartada. Assim, Visconti perde a oportunidade de ser incisivo e praticamente se iguala em omissão a Rocco, na medida em que reiteradamente se esforça para justificar os equívocos por ele cometidos em atenção ao elo familiar. Ao quase abençoar tal comportamento, o longa-metragem denota o quão, por mais panfletário e portador de uma denúncia que possa ter sido considerado ao tempo de seu lançamento, é, em sua essência, machista porque preocupado demais com os orgulhos arranhados da ala masculina, relegando a um plano subalterno o drama feminino de mulheres que, como Nadia, são rotineiramente humilhadas e não raro agredidas e mortas por pessoas do sexo oposto.
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1.Neste sentido, Geoff Andrew observa que Rocco e Seus Irmãos é: “um filme de transição essencial no afastamento de Luchino Visconti de sua adesão inicial aos princípios do neo-realismo (confessadamente já diluída por um interesse pelo trágico que beirava o melodramático)” (1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer. Rio de Janeiro: Sextante, 2010. p. 369).

FICHA TÉCNICA

Título Original: Rocco I Suoi Fratelli
Direção: Luchino Visconti
Roteiro: Luchino Visconti, Suso Cecchid'Amico, Enrico Medioli, Masssimo Franciosa, Pasquale Festa Campanile
Elenco: Alain Delon, Annie Girardot, Claudia Cardinate, Corrado Pani, Katina Paxinou, Max Cartier, Nino Castelnuevo, Renato Silvatori, Rocco Vidolazzi, Alessandra Panaro, Suzy Delair, Renato Terra, Franca Valeri, Spiros Focás, Paolo Stoppa, Claudia Mori,  Adriana Asti, Enzo Fiermonte, Becker Masoero
Produção: Goffredo Lombardo
Trilha Sonora: Nino Rota
Fotografia: Giuseppe Rotunno
Edição: Mario Serandrei
Figurino: Piero Tosi
Duração: 175 min.

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